quarta-feira, agosto 23

Quando o que temos cá dentro é tudo o que resta

Ontem foi, de facto, um dia de emoções fortes. Devido a um trabalho confrontei-me com uma história triste de alguém que perdeu tudo o que tinha num incêndio. Ganhou uma casa nova, é certo, mas perdeu no fogo os sonhos da juventude, o esforço de horas de trabalho (pois foi ele que há 50 anos construiu a pulso tudo o que perdeu), muito investimento afectivo e todos os registos que, agora, só a imaginação lhe pode trazer.

O que mais me impressionou naquele homem forte - que apenas se mostrava frágil pelos olhos rasos de lágrimas quando revivia a tragédia - foi o sorriso que conseguiu sempre manter ao longo das horas de conversa. Mais do que isso, o que me impressionou mesmo foi o facto de conseguir gracejar de cada vez que se recordavam as tradições do passado: "pois, dantes a gente usava muito o burro. Mas burros ainda há muitos! E eu de vez em quando sou um deles...".

Senti-me muito pequena diante da humildade e grandeza daquele homem. E burra. Burra por reclamar muitas vezes com as perdas que tenho (todos temos ao longo da vida, em várias vertentes) e que em nada se assemelham às daquele senhor. Depois também pensei que, na realidade, as coisas que valem a pena e acabam por ficar nas nossas vidas ninguém nos pode tirar. No caso do senhor Manuel, foram-se a casa, os animais, as vinhas, as fotografias e todos os registos materiais do passado. Mas ficaram um sorriso de fazer inveja a muitos e a capacidade de, aos 76 anos, recomeçar do zero uma vida que construiu com muito suor e esforço. Além de coragem evidente, é preciso uma enorme humildade perante a vida... para poder colocar a hipótese de que, se calhar, poucas coisas nos pertencem mesmo e muito pouco resta que nos seja possível controlar e manipular. E eu nisso, reconheço, sou muito pouco humilde...

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